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*Artigo traduzido do original em “Hyposkillia: Deficiency of Clinical Skills“

Editorial Convidado Herbert L. Fred, MD, MACP

A profissão médica enfrenta hoje muitos problemas. Estamos sendo orientados pela burocracia, perdemos nossa autonomia, nosso prestígio tem espiralado para baixo e nosso profissionalismo está esmorecendo. 1,2 Mas nossos problemas não terminam aqui.

Esconder-se na sombra desses males é mais uma doença, pela qual somos os únicos responsáveis, e que põe em perigo o público que atendemos. Ela começa na faculdade de medicina, onde quase nunca recebe a atenção que merece. Durante a residência, continua sendo fácil de detectar, mas os esforços para isso não são rotina. E mesmo quando se torna notável, as medidas para corrigi-la são muitas vezes ignoradas, inadequadas ou, na melhor das hipóteses, temporárias.

Chamo essa doença de hyposkillia – deficiência das habilidades clínicas. Por definição, os que são acometidos por ela estão mal equipados para prestar um bom atendimento ao paciente. No entanto, programas de treinamento de residência em todos os Estados Unidos estão formando um número cada vez maior desses “hiposkilliacos” – médicos que não conseguem fazer uma anamnese adequada, não conseguem realizar um exame físico confiável, não conseguem avaliar criticamente as informações que obtêm, não conseguem criar um plano de tratamento consistente, têm pouco poder de raciocínio e comunicam-se de maneira precária. Além disso, eles raramente despendem tempo suficiente para conhecer seus pacientes “completamente”.3 E pelo fato de serem rápidos para tratar a todos, não aprendem nada sobre a história natural da doença.

Esses indivíduos, no entanto, tornam-se proficientes em várias coisas. Eles aprendem a solicitar todos os tipos de exames e procedimentos – mas nem sempre sabem quando solicitar ou como interpretá-los. Eles também aprendem a jogar o jogo dos números4 – tratando um número ou algum outro tipo de resultado de exame em vez de tratar o paciente a quem o número ou resultado do exame pertence. E usando tantos exames e procedimentos sofisticados, inevitavelmente e involuntariamente adquirem uma mentalidade orientada para o laboratório ao invés de orientada para o paciente. A propósito, contribuem com essa mentalidade as organizações de manutenção da saúde que forçam os médicos a atender um número máximo de pacientes, em um número mínimo de minutos, pelo menor número de dólares.

O problema da deficiência das habilidades clínicas é longo e generalizado.5-16 Sua causa, no entanto, é evidente – treinamento deficiente. E a culpa, é claro, recai sobre nós, os professores. Por que, então, permitimos que tais deficiências se desenvolvam, persistam e cresçam? A resposta, acredito, tem dois lados.

Primeiro, os valores e prioridades globais da sociedade não são o que costumavam ser. Por exemplo, quando fiz meu treinamento em meados de 1950, trabalho árduo, orgulho de si, devoção ao dever, responsabilidade rigorosa e a busca pela excelência eram as normas. Hoje, no entanto, a ênfase está nas horas de trabalho limitadas, em busca por ganhos pessoais e focados no politicamente correto. Orgulho e (especialmente) responsabilidade quase desapareceram. Consequentemente, as pessoas em todos os níveis – incluindo muitos estudantes de medicina, recémformados e membros do corpo docente – estão satisfeitos com a mediocridade, a única norma que conhecem.

A segunda parte da minha resposta diz respeito ao treinamento que os professores em si recebem. A maioria dos professores de medicina de hoje foi treinada após o início da década de 1970 – época em que a tecnologia médica moderna começou a florescer. A medicina high-tech (de alta tecnologia) é tudo que eles já viram, a qual todos conhecem e, portanto, todos podem ensinar. Sem culpa própria, eles não têm nenhuma ideia real da medicina high-touch (de alto toque).

O que quero dizer com medicina high-touch? Refiro-me à medicina baseada em uma anamnese cuidadosamente construída, atrelada a um exame físico pertinente e avaliação crítica das informações então obtidas. Em seguida, determina-se que exames, se houver, são indicados. E se os exames forem considerados necessários, os mais simples são solicitados primeiro. Em comparação, a medicina high-tech essencialmente ignora a anamnese e o exame físico e, primariamente com base na queixa principal, vai diretamente a uma série de exames que tipicamente incluem imagens de ressonância magnética ou tomografia computadorizada, ou ambos.

Outro ponto é importante. Ao ignorar ou abreviar a anamnese e o exame físico, a abordagem high-tech enfraquece o vínculo paciente-médico – ou impede que ele se forme. A abordagem hightouch, em contrapartida, representa a apoteose da medicina Osleriana, que garante que tratemos o paciente, não a doença.

A conclusão é: embora a tecnologia médica moderna tenha aumentado muito a nossa capacidade de diagnóstico e tratamento da doença, ela também promoveu a preguiça – especialmente a preguiça mental – entre muitos médicos. A confiança habitual em aparelhos médicos sofisticados para o diagnóstico impede que os médicos usem a máquina mais sofisticada e intrincada que sempre tiveram – o cérebro.

Existe uma cura para essa tirania da tecnologia? Qualquer cura seria muito difícil porque, no mínimo, iria exigir uma renovação total do corpo docente de nossas faculdades de medicina. Atualmente, esse corpo docente consiste, em grande parte, em dois grupos: fellows e instrutores jovens que têm muitos fatos, mas pouca experiência, e professores mais velhos que são proficientes em apenas um estreito segmento de sua especialidade. Ambos os grupos passam a maior parte de seu tempo dando palestras, escrevendo artigos, trabalhando nas clínicas ou laboratório, ou viajando para reuniões. Essas atividades, sejam elas determinadas pela faculdade ou autoimpostas, limitam o contato entre o corpo docente e os estudantes. E mandados recentes que limitam o tempo de trabalho do residente reduz ainda mais esse contato. O ensino que existe ocorre principalmente na sala de palestras, sala de conferências ou no corredor fora do quarto do paciente, e não à beira do leito do paciente. Estudantes e recém-formados acabam gastando mais e mais tempo participando de palestras ou conferências e cada vez menos tempo atendendo seus pacientes. Com acesso limitado ao corpo docente, os treinandos voltam-se para os recém-formados e para os colegas que estão um a dois anos a sua frente para buscar orientação – uma situação que eu considero “o cego conduzindo o cego”.

O que precisamos para aliviar e reverter potencialmente esta tendência? Em primeiro lugar, precisamos de professores que reconheçam que, apesar do espectro dos comitês de revisão da residência, nosso trabalho é educar, não amansar, nossos treinandos.

Isso posto, precisamos de mais professores que conheçam e compreendam a fisiopatologia, manifestações clínicas e história natural das doenças; professores que saibam que exames, se houver, devem ser solicitados, quando solicitá-los e como interpretá-los; e professores que usem a tecnologia avançada para verificar e não formular suas impressões clínicas.

Precisamos de professores que realmente compreendam o valor de uma boa anamnese, as recompensas de um exame físico pertinente, o poder de saber como pensar e a importância da responsabilidade; professores que primeiro usem o estetoscópio, não um ecocardiograma, para detectar doenças cardíacas valvulares; professores que utilizem primeiro o oftalmoscópio, não a ressonância magnética, para detectar hipertensão intracraniana; professores que usem primeiramente os olhos, não um aparelho de gasometria, para detectar cianose; professores que primeiro usem as mãos, não a tomografia computadorizada, para detectar esplenomegalia; e professores que sempre usem seus cérebros e seus corações, não uma horda de consultores, para tratar seus pacientes.

Precisamos de professores que não solicitam exames caros, de última geração, quando exames mais baratos, convencionais fornecem a mesma informação; professores que não administram uma série de medicamentos em um esforço para aliviar todo possível doente; professores que valorizam que fazer nada é, às vezes, fazer muito; e professores que percebem que muitos pacientes ficam bem apesar do que fazemos, não por causa do que fazemos.

Infelizmente, esses modelos de comportamento necessários são uma espécie em extinção. A maioria deles morreu ou se aposentou, e aqueles que ainda têm contato regular com os estudantes de medicina e médicos residentes recém-formados são muito poucos para impedir a maré tirânica daqueles habituados ao uso excessivo de tecnologia médica moderna.

Podemos possivelmente reconstituir esses modelos de ensino? Acho que não. Mas, mesmo que pudéssemos, não seria suficiente. Precisamos aproveitar os modelos de comportamento que estão atualmente praticando boa medicina fora da academia. O que esses profissionais veem e fazem a cada dia tem pouquíssima semelhança com o que os estudantes e recém-formados veem e fazem na academia. Portanto, boa parte da experiência clínica deve ocorrer no cenário do mundo real, supervisionado por profissionais experientes, compassivos, de bom senso, do mundo real.

Desejo fervorosamente que os atuais professores de medicina possam de alguma maneira recuperar o espírito osleriano e esforcem-se diligentemente para restaurar o núcleo verdadeiro de ser médico – o humanismo. Alcançar esse objetivo exigirá professores com compromisso, compaixão, sinceridade e bom senso. Professores que entendam e acreditem que a medicina é um chamado, não um negócio. Professores que consigam olhar, ouvir e conversar com os pacientes. Professores que trabalhem tão duro e o quanto for necessário para garantir o bem-estar dos pacientes. E professores que sempre coloquem os pacientes em primeiro lugar.

 

Dr. Herbert L. Fred, Professor – Departamento de Medicina Interna, Cento de Ciências de Saúde da University of Texas, em Houston.

Referências

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